sábado, 20 de abril de 2024
06/05/2020 11:39

Entrevista Jaime da Veiga: Quem pode e quem não pode ser responsabilizado pelo descumprimento dos contratos comerciais?

“A propagação do Covid-19 pelo mundo, trouxe um cenário de incertezas, inclusive no que diz respeito aos aspectos jurídicos e econômicos”

Contratos servem essencialmente para definir riscos. Afinal, quando as pessoas quando entram numa relação contratual, ela buscam ao máximo antecipar possíveis problemas que podem inviabilizar a execução do que foi pactuado, definindo, inclusive, quem será responsável por esses eventos. No entanto, a pandemia do Novo Coronavírus (Covid-19) criou um novo cenário não só no Brasil, como em todo o planeta. Os impactos são devastadores na saúde da população e também na economia global, pois não se tem certeza de mais nada.

E a pergunta se torna bem mais complexa pelo fato de que estamos diante de uma inédita pandemia, que fecha fronteiras nacionais, impõe uma política forçada de isolamento coletivo e restringe a atividade produtiva. E quem pode e quem não pode ser responsabilizado pelo descumprimento dos contratos comerciais? De quem são, afinal, os prejuízos? Afinal, a disseminação Covid-19 entre era certamente um fato imprevisível até o final do ano passado. Ninguém poderia imaginar que ela ocorreria e as consequências globais que ela geraria.

                Estas e outras perguntas relacionadas a essa nova realidade mundial, que abre inúmeras interpretações nos mais diversos campos, são respondidas com exclusividade à Revista Portuária – Economia & Negócios pelo advogado Jaime da Veiga, da Jaime da Veiga Advocacia & Assessoria Empresarial, de Itajaí. Ele é especialista em Direito Processual Civil, pós graduado pela Magistratura do Trabalho e em Direito do Trabalho e Previdência Social e mestrando em Políticas Públicas pela Universidade do Vale do Itajaí, além de ter feito uma série de outros cursos complementares na área de Direto.

 

Revista Portuária – Economia & Negócios: Dá pra dizer que a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que chegou ao mundo de modo totalmente imprevisto, cria um novo olhar em torno do Direito?

Jaime da Veiga: Sabe-se os coronavírus são vírus causadores de infecções respiratórias que, normalmente, desenvolvem-se de maneira leve. Ocorre que, no final do ano passado, uma nova espécie de vírus surgiu, sendo denominado pela Organização Mundial da Saúde, como Covid-191.

Desde então, acredita-se que há no mundo, pelo menos oito tipos do vírus Covid-19 (SARS-CoV-2), considerando o seu potencial de mutação. Diante deste fato, é que várias pesquisas vêm sendo realizadas, a fim de descobrir o tratamento adequado para doença2. Justamente por não existir à cura é que se verifica o alastramento do Covid-19 em âmbito mundial, de modo a causar consequências na esfera jurídica.

Vários já são os impactos suportados pela população, tanto à nível social, econômico, e em relação à saúde. Por exemplo, devido a suspensão das atividades não essenciais, com base na Lei 13.979/2020 e decretos estaduais e municipais, diariamente pessoas são demitidas e diversos são os prejuízos suportados pelos empregadores. Visualiza-se um efeito em cascata, pois se o empregador/empresário está impedido de exercer sua atividade econômica, não terá dinheiro para pagar seus funcionários, bem como o estabelecimento locado para funcionamento do negócio.

Logo, forma-se uma cota populacional desprovida de rendimentos que, por sua vez, carecerá de recursos para consumir produtos [desde os supérfluos até os indispensáveis à sobrevivência], além de não possuírem mais condições de quitar parcelas de bens móveis ou imóveis adquiridos e/ou locados.

Diante da conjuntura vivenciada e de um fato que pode ser enquadrado como “força maior”, não há outra alternativa, senão a de flexibilizar algumas normas do Direito, a fim de estender um olhar mais humanizado e atender às necessidades daqueles atingidos pela pandemia.

Nesse sentindo, existem várias decisões proferidas, como aquelas que autorizam a redução de aluguéis de estabelecimentos comercial; possibilitam o diferimento de tributos federais, bem como a redução de jornada e salário ou a suspensão temporária do contrato de trabalho. Medidas estas que permitem garantir emprego e renda e, ao mesmo tempo, a continuidade das atividades laborais e empresariais (MP 936/20203).

 

RPEN: De que forma isso ocorre e quais as áreas do Direito devem ter mais mudanças em decorrência dessa nova realidade?

JV: Há leis federais, portarias e decretos, tanto estaduais como municipais, os quais foram publicados com intento de regulamentar esse período de calamidade pública e emergência de saúde pública, decorrentes do Covid-19.

Ante a esse cenário, foi sancionada pelo Presidente da República, a Lei nº 13.979/2020, de 6 de fevereiro de 2020, com objetivo de implementar medidas a serem adotadas enquanto durar a situação supracitada4.

Com supedâneo no aludido preceito, diversos municípios e estados do país elaboraram regras, com desígnio de orientar a população e proteger à coletividade, por meio da imposição de medidas como o isolamento e a quarentena.

Dentre eles, menciona-se os Decretos 515/2020, 525/2020, cujos quais dispuseram sobre a situação de emergência em todo o estado de Santa Catarina e as estratégias para prevenção e enfretamento à epidemia do Covid-19, a saber:

- suspensão das atividades não essências; manutenção das atividades essenciais; suspensão de eventos e reuniões de quaisquer naturezas (público ou privado), dentre outras estratégias necessárias para contenção da disseminação do coronavírus.

Importante citar também, que no dia 6 de abril de 2020, entrou em vigor a Portaria SES nº 223/2020, publicada pelo estado de Santa Catarina, permitindo a retomada das atividades de profissionais autônomos/liberais, da área e interesse da saúde e os liberais em geral, além de clínicas, consultórios, serviços de diagnósticos por imagem, óticas, laboratórios óticos, serviços de assistência e prótese odontológica e escritórios em geral (art. 1º, incisos I ao IV da Portaria SES nº 223/2020).

Quanto as áreas do Direitos que observamos maiores mudanças/impactos: direito civil, direito tributário e direito do trabalho, sendo este último um dos mais comentados, por ocasião do desemprego, consequência do impacto econômico percebido pelas empresas/comércios, em decorrência da suspensão das atividades não essenciais.

Inerente ao direito civil, destaco como exemplo a possibilidade da redução do valor do aluguel, seja por pessoa jurídica (empresário) ou até mesmo pessoa física, enquanto durar a crise sanitária. 

 

  • 22ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo (1026645-41.2020.8.26.0100), autorizou, no dia 02/04/2020, a redução do valor do aluguel pago por restaurante, devido à pandemia ocasionado pelo Covid-19. A empresa pagará 30% do valor original do aluguel, enquanto durar a situação de calamidade pública e emergência de saúde pública[1].

 

*Fundamento do Juiz Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, com base no Decreto Estadual nº 64.881/2020 que, no artigo 2º, inciso II, proíbe a abertura ao público das atividades de restaurante:

 

Tal situação ocasionou a queda abrupta nos rendimentos da autora, tornando a prestação dos alugueres nos valores originalmente contratados excessivamente prejudicial a sua saúde financeira e econômica, com risco de levá-la à quebra”5.

 

Ainda, o magistrado asseverou que todos iremos experimentar prejuízos econômicos, especialmente no meio privado:

 

Cabe ao Poder Judiciário, portanto, intervir em relações jurídicas privadas para equilibrar os prejuízos, caso fique evidente que pela conduta de uma das partes a outra ficará com todo o ônus financeiro resultante deste cenário de força maior”7.

 

No que tange ao direito tributário, há decisão liminar autorizando o diferimento de tributos federais, por conta da pandemia vivenciada, como aquela proferida nos autos de nº 1016660-71.2020.4.01.3400, juiz Rolando Valcir Spanholo, da 21ª Vara Federal Cível do Distrito Federal.

No dia 26 de março de 2020, ao julgar o processo susodito, o magistrado registrou que a limitação financeira arguida pela parte (pessoa jurídica), sobreveio da quarentena horizontal imposta por motivos sanitários em âmbito nacional, o que resultou num déficit financeiro importante.

Por isso, permitiu,

“[...]excepcionalmente, pelo prazo de três meses, contados de cada vencimento, o diferimento do recolhimento dos tributos federais indicados na exordial (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS), como forma daquela empregadora GARANTIR A MANUTENÇÃO integral dos mais de CINCO MIL postos de trabalho narrados na inicial (o que deverá ser comprovado mensalmente a este juízo, sob pena de imediata revogação da ordem judicial, sem prejuízo da imposição de outras sanções cabíveis”8. Grifou-se. 

 

Finalmente, atinente ao direito do trabalho, consoante se acompanha inclusive pela mídia social, tem-se adotado uma variedade de medidas para manutenção do emprego e renda.

A MP nº 927/2020 e MP nº 936/2020, previram as seguintes alternativas, respectivamente: teletrabalho; antecipação de férias individuais; concessão de férias coletivas; aproveitamento e antecipação de feriados; banco de horas; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; o direcionamento do trabalhador para qualificação; o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS; redução proporcional de jornada e trabalho ou suspensão temporária do contrato de trabalho.

 

RPEN: Com relação às questões contratuais, quando as pessoas entram em uma relação contratual elas tentam antecipar possíveis problemas que possam inviabilizar a execução do que foi pactuado, definindo quem será responsável por esses eventos. No caso desta pandemia, como isso fica?

JV: Primeiramente, deve-se entender que a pandemia decorrente do Covid-19, classifica-se como caso de força maior.

Segundo Gonçalves (2016), acontecimentos oriundos de força maior, são todos aqueles derivados de ocorrências naturais (raio, inundação, terremoto), etc 9. O surgimento do novo coronavírus, aí se encaixa, justamente por ser fenômeno da natureza, de caráter excepcional, inevitável e imprevisível.

Logo, às relações contratuais comerciais, deve ser aplicado o descrito no art. 393 do Código Civil, visto que sequer haveria possibilidade de antever à presente pandemia, pelas partes envolvidas.

O art. 393 do Código Civil, versa sobre o inadimplemento das obrigações, no seguinte sentindo:

 

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possível evitar ou impedir.  Grifou-se.

Logo, o devedor estará desobrigado a responder pelos prejuízos/consequências advindas da força maior. Não obstante, há aí uma exceção: se tiver estipulado em contrato, responsabilidade quanto aos eventos danosos resultantes da força maior, estará obrigado a repará-los.

Além disso, para que o devedor possa suspender a obrigação pela qual se obrigou, far-se-á necessário a demonstração do efetivo prejuízo financeiro suportado que justifique a impossibilidade momentâneo do cumprimento do dever contratual assumido 10.

Outrossim, a doutrina e jurisprudência também orientam em dar preferência pela suspensão temporária do contrato, ao invés das partes optarem pela ruptura do acordado, a fim de que volte a viger, cessado o estado de calamidade pública e emergência de saúde pública 11.

 

RPEN: Com o atual cenário gerado pela pandemia do Covid-19, que fecha fronteiras nacionais, impõe uma política forçada de isolamento coletivo e restringe a atividade produtiva. Fatores como esses podem servir de justificativas para o não cumprimento de contratos?

JV: Depende do tipo de contrato a que você se refere. Em contratos comerciais, é possível aplicar o art. 393 do Código Civil, lembrando que deverão ser observados os requisitos anteriormente mencionados, como inclusive, a inexistência de previsão contratual quanto à responsabilidade do devedor, frente ao caso de força maior.

Como a situação atingiu a todos de surpresa, tem que se ter o cuidado de agir com os preceitos legais, constitucionais, bem como em observância aos entendimentos jurisprudenciais já consolidados.

Não basta a mera alegação da pandemia em decorrência do Covid-19, para o indivíduo se escusar ao cumprimento dos contratos, pois se fosse assim, mesmo aqueles que não estão percebendo prejuízos econômicos, aproveitar-se-iam do ensejo, simplesmente com intuito de levar vantagem.

Nos contratos de locação, por exemplo, são inúmeras as tentativas referentes à ausência de cumprimento do pagamento mensal dos alugueres. Entretanto, salvo os casos em que as partes pactuam livremente essa redução, por meio de aditivo contratual, deve-se submeter aludida pretensão à análise do judiciário.

À título exemplificativo, nos autos do processo nº 0707596-27.2020.8.07.0000 (Ação Revisional de Aluguel), o qual foi objeto de apreciação em segundo grau, determinou-se a redução do valor do aluguel de um escritório de advocacia (meses março, abril e maio de 2020) 12

O desembargador Eustáquio de Castro, do TJ/DF, entendeu que a situação financeira do escritório restou prejudicada, em virtude da pandemia ocasionada pelo Covid-19, pois as ações

 

“[...] podem ser postergadas para depois da Pandemia, atingindo em cheio escritórios de menor porte, diminuindo o fluxo de capital e inviabilizando o pagamento do valor cheio do aluguel [...]”. “A Ação Revisional de Aluguel, na situação específica ora tratada, tem caráter pontual. A Pandemia acabará, apenas sua duração é incerta”. Grifou-se13.

 

Desse modo, constata-se que não basta a mera alegação da pandemia pelo Covid-19, pois tanto nos contratos comerciais, quanto nos contratos de locação, a parte que desejar suspender a sua obrigação, deverá comprovar a superveniência de insuficiência arguida.

Concernente aos contratos de trabalhos, o empregador deverá cumprir com suas obrigações, porém em se tratando da suspensão das atividades não essenciais e prejuízos econômicos advindos, poderá usufruir de uma série de medidas.

O art. 501 da CLT, c/c art. 502 da CLT, possibilita o empregador, diante da ocorrência de força maior e extinção da empresa, romper a relação empregatícia com seus funcionários, mediante o pagamento de uma indenização no valor da metade que seria devida na modalidade de rescisão sem justa causa, inclusive nos contratos por prazo determinado, porém atinente àquela que se refere o art. 479 desta Lei.

Para as empresas que optarem por suspender suas atividades (MP nº 936/2020) ou adotar as alternativas da MP nº 927/2020, deverão seguir as regras das respectivas medidas provisórias.

Além do mais, de acordo com o art. 2º da CLT, é do empregador os riscos da atividade econômica realizada, não podendo simplesmente se escusar de cumprir as obrigações que lhe são legalmente impostas.

Foi pensando nisso, que as medidas provisórias supracitadas foram adotas, eis que visam dar continuidade as atividades empresais e laborais, fomentar a econômica (mesmo que em percentuais menores) e garantir emprego e renda dos trabalhadores. 

 

RPEN: Como decidir quem é responsável pelos prejuízos decorrentes do descumprimento de obrigações pactuadas que se tornaram impossíveis ou foram extremamente dificultadas em virtude da Covid-19?

JV: Num panorama geral, muito se tem discutido sobre a aplicação do Fato do Príncipe, com intento de responsabilizar o órgão que determinou a suspensão temporária das atividades não essências, pelos prejuízos econômicos suportados pela parte afetada. 

Essa teoria é muito aplicada ao direito administrativo/contratos administrativos, quando por determinação estatal, imprevista e imprevisível, há oneração à execução do entabulado, trazendo prejuízos que dificultem ou até mesmo impeçam, a perfectibilização do acordado pelas partes. Veja-se:

 

“ [...] toda determinação estatal, positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execução do contrato administrativo. Essa oneração, constituindo uma álea administrativa extraordinária e extracontratual, desde que intolerável e impeditiva da execução do ajuste, obriga o Poder Público contratante a compensar integralmente os prejuízos suportados pela outra parte, a fim de possibilitar o prosseguimento da execução, e, se esta for impossível, rende ensejo à rescisão do contrato, com as indenizações cabíveis”14.

 

Nesses casos, permite-se a alteração ou até mesmo a rescisão do contrato administrativo, devendo a autoridade responsável, pagar à parte lesada todas as indenizações cabíveis, quando verificada a modificação de circunstâncias sob as quais o contrato fora firmado.

 

Como exemplo, a proibição de veículos pesados em certas vias extinguiria o serviço de transporte de ônibus, caso não houvesse rotas alternativas ao serviço. OBS: havendo um fato do príncipe, a responsabilidade é integralmente do ente público, pois é este quem gerou o prejuízo15.

 

Essa teoria também pode ser aplicada ao Direito do Trabalho, por intermédio do descrito no art. 486 da CLT:

 

“Art. 486. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. [...]”.

 

Do exposto, compreende-se que o factum principis é uma espécie de força maior, sendo que para sua caracterização, além dos requisitos previstos no art. 501 da CLT, deverá haver impossibilidade da continuação da atividade empresarial, num todo ou parcialmente (no setor em que labora o empregado), em razão de lei ou ato administrativo 16.

Na conjuntura atual, verifica-se o sobredito, quando por meio dos Decretos supramencionados, o Governador do estado de Santa Catarina, determinou a suspensão temporária das atividades não essenciais, com supedâneo, na Lei Federal de nº 13.9792020.

Nessa senda e com base no art. 486 da CLT, discute-se sobre a possibilidade de aplicar o fato do príncipe à pandemia vivenciada, posto que o dispositivo legal abarca além da extinção dos estabelecimentos, as longas paralisações de atividades motivadas por fatos alheios e imprevisíveis, para os quais o empregador não concorreu 17.

Por intermédio do emprego do presente instituto, é permitido operar a cessação do contrato de trabalho do empregado, atribuindo ao ente público responsável pelo ocorrido, o dever de pagar àquele a respectiva indenização trabalhista 18.

Para isso, o empregador deverá invocar a pretensão suscitada, utilizando-se de documento hábil, a ser apresentado ao juiz competente à apreciação da causa, nos termos dos parágrafos primeiro e segundo do art. 486 da CLT.

A dispensa será encaixada na modalidade sem justa causa, respondendo a Administração Pública somente pelas indenizações devidas ao empregado, excluindo desses valores, as demais verbas rescisórias 19.

Contudo, embora haja previsão legal para tanto, muito se discute sobre a aplicação do art. 486 da CLT à situação pandemia pelo Covid-19, justamente por se tratar de fato novo e escasso de decisões, nesse sentido.

De acordo com o Desembargador do Trabalho (TRT da 1ª Região), Enoque Ribeiro dos Santos, há raríssimos casos julgados procedentes, com fulcro no fato do príncipe e com desígnio de excluir a responsabilidade do empregador.

Para Enoque Ribeiro, as determinações do Estado em consequência da pandemia pelo Covid-19, possuem “[...] índole preventiva, acautelatória, em prol da dignidade da pessoa humana e relacionadas a matéria de ordem pública, de imperatividade absoluta [...]”20.

Em complemento, o Desembargador versou que o fechamento temporário de estabelecimentos industriais, comerciais e de serviço, encontram amparo no direito à saúde, higiene e medicina pública preventiva, afastando assim, a aplicabilidade do art. 486 da CLT, mesmo que existam leis regendo à situação 21.

Ainda, poder-se-ia fundamentar a corrente susodita, na ausência de discricionariedade do ato do poder público que, frente à pandemia enfrentada (“Act of God”), não teve outra

opção, senão a de instituir a suspensão temporária das atividades e o isolamento social, para preservação da vida humana

Noutra senda, há quem defenda o emprego do art. 486 da CLT, por conta das consequências econômico-sociais geradas pelo Covid-19. Essa foi a decisão do juiz Rolando Valcir Spanholo, da 21ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, nos autos de nº 1016660-71.2020.4.01.3400.

No dia 26 de março de 2020, ao julgar o processo susodito, o magistrado registrou que a limitação financeira arguida pela parte (pessoa jurídica), decorreu de atos e ações deflagrados pela própria Administração Pública, qual seja, quarentena horizontal 22.  

Nessa vertente, o juiz destacou que a autora “[...] não deu causa ao indesejado evento e muito menos teria condições de obstar os efeitos da quarentena horizontal imposta por motivos sanitários em âmbito nacional” 23.

Por isso, aplicou a Teoria do Fato do Príncipe, com objetivo de salvalguardar a postulante, autorizando o diferimento de recolhimento de tributos federais, com objetivo de manter a atividade econômica e salvaguardar os empregos 24.

Muito embora essa decisão tenha sido proferida em âmbito tributário, seria permissível a sua aplicação, analogicamente à esfera trabalhista, visto que os fundamentos fáticos e jurídicos utilizados são os mesmos os quais consubstanciam a aplicação do art. 486 da CLT.

Ademais, para essa teoria, há existência de discricionariedade nos decretos estaduais e municipais, posto que o art. 3º da Lei n. 13.979/2020, facultou à aplicabilidade das medidas descritas em seus incisos I ao VIII.

Desse modo e de fronte ao evento imprevisível vivenciado, deverá o poder judiciário, para uma melhor solubilidade dos casos, considerar a singularidade da pandemia pelo Covid-19, e a possibilidade da aplicação ou não do disposto no art. 486 da CLT, no âmbito administrativo e também tributário, a fim de construir decisões sólidas, capazes de respeitar à ordem econômica e valorização do trabalho humano (art.  170 da CRFB/88).

 

RPEN: O Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, já havia emitido até o início de março mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais de 53 bilhões de dólares em prejuízos. Isso pode vir a acontecer no Brasil também? Essa previsão contratual é plenamente compatível com o direito brasileiro?

JV: O Governo Chinês, orientou as empresas a não abrirem as portas, com base no motivo de força maior, frente à instituição da pandemia ocasionada pelo Covid-19. Para isso, anunciou o próprio CCPIT (Conselho da China para a Promoção do Comércio Internacional), o qual se responsabilizou em emitir Certificados de Força Maior para empresas chinesas afetadas.

Dessa atitude, podemos extrair a boa-fé objetiva do Governo Chinês, quanto ao cumprimento dos contratos lá firmados, bem como daqueles pactuados com outros países (contratos internacionais).

Importante asseverar que com esse certificado, as empresas brasileiras estarão impedidas no que pugnar pelo cumprimento de contratos firmados com empresas chinesas.

No Brasil, até o momento, não há notícia de medida similar (expedição de certificado de força maior). Porém, conforme já mencionado, o nosso ordenamento jurídico, por meio do art. 393 do Código Civil, permite aplicação da força maior como excludente de responsabilidade do devedor.

Logo, aos contratos de jurisdição brasileira, poder-se-á invocar o referido dispositivo legal, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos e o devedor não tenha se responsabilizado, expressamente, pelos prejuízos resultantes da força maior.

Certamente que os contratos firmados entre Brasil e outros países que não a China, deverão ser analisados com cautela caso a caso, buscando-se, sempre que possível, a renegociação do acordado, para que após cessada à pandemia, possa-se retomar as obrigações estabelecidas nos instrumentos.

 

RPEN: E o conceito da impraticabilidade, de que forma ele pode ser aplicado o caso da pandemia do Covid-19? Como esse conceito pode ser aplicado no atual cenário e de que forma essa impraticabilidade pode ser justificada?

JV: A propagação do Covid-19 pelo mundo, trouxe um cenário de incertezas, inclusive no que diz respeito aos aspectos jurídicos e econômicos. Contratos firmados anteriormente à pandemia, cuja vigência perpetua até então, têm sido objetos de discussão, principalmente quanto aos obstáculos enfrentados para o cumprimento de suas obrigações.

Por isso, discute-se sobre a aplicabilidade do conceito da impraticabilidade, cujo qual se encontra mais aperfeiçoado no direito americano 25.

A impraticabilidade pode ser definida, como a impossibilidade da execução do contrato pela parte a qual se obrigou, em decorrência de evento cuja não acontecimento era premissa indispensável à perfectibilização do pactuado. Nesses casos, ficará o devedor desobrigado de cumprir o acordado pelas partes, uma vez que ausente de culpa, salvo se previsto de forma diversa no contrato 26.

De mais a mais, a nossa jurisprudência é pacífica quanto a relativização do princípio da pcta sunt servanda, quando a sua aplicação prática, encontra-se condicionada a outros fatores, como a onerosidade excessiva e o princípio da boa-fé objetiva dos contratos 27.

Trazendo para o momento atual, obviamente que a pandemia decorrente do Covid-19, é fato de natureza excepcional, inevitável e imprevisível, motivo pelo qual se justificaria a aplicabilidade da teoria supracitada, já que o devedor, não concorreu direta ou indiretamente, para o evento o qual impossibilitou o cumprimento do contrato pactuado.

Desse modo, exclui-se a responsabilidade contratual, enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência de saúde pública, desde que o devedor não tenha incluso no contrato, cláusula de responsabilização expressa referente aos eventos relacionados a caso fortuito ou força maior.

 

RPEN: Que outras doutrinas ou justificativas podem ser usadas nesse caso de pandemia?

JV: Consoante o já relatado, às relações contratuais, econômicas/tributárias (em âmbito nacional), deverão prevalecer os entendimentos jurisprudenciais pacificados, com observância dos preceitos embutidos na Carta Magna e das doutrinas dominantes de cada área.

É um cenário nunca experimentado pelo país, de forma que deverá ser preconizada à saúde, conjuntamente com econômica, já que esta é responsável por promover o sustento e bem-estar da população.

Sobre teorias, estuda-se a possibilidade da aplicação da Teoria do Fato do Príncipe, porém, quaisquer decisões nesse sentido, devem ser tomadas de forma cautelosa, eis que raros são os casos julgados procedentes, até mesmo para que não ocorra oneração demasiada dos cofres públicos, visto que grande aporte financeiro tem sido direcionado à saúde e ao pagamento de benefício assistenciais.

Outro conceito possível de ser enquadrado ao caso em apreço é o da impraticabilidade, ante as justificativas acima narradas.

 

RPEN: E como o senhor vê o atual cenário em termos de segurança jurídica?

JV: Na verdade, a situação vivenciada é de insegurança jurídica, por se tratar de evento excepcional e que trouxe impactos até então não experimentados.

O Governo Federal, juntamente com os governos estaduais e municípios, vêm se unindo em busca de medidas voltadas à proteção da vida e contenção da proliferação do Covid-19. Para isso, já foram publicadas leis, medidas provisórias e portarias, muitas, inclusive, flexibilizando algumas normas do direito. Como exemplo, cito o art. 11, §4º da MP 936/2020.

Este dispositivo previu que os acordos individuais de redução proporcional de jornada e salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho poderiam ser feitos, sem a anuência do respectivo sindicato da categoria.

Ocorre que partido Rede Sustentabilidade propôs a ADI nº 6363, alegando a inconstitucionalidade do art. 11, §4º da MP 936/2020, tendo em visa que o art. 7, VI da CRFB/88, admite a redução salarial apenas por meio de negociação coletiva (ACT ou CCT).

No dia 6 de abril deste ano foi deferida medida cautelar, estabelecendo que os acordos individuais previstos no art. 11,§ 4º da MP 936/2020, para ter validade, deverão ser submetidos ao Sindicado dos Trabalhadores. Ainda, de acordo com a decisão, a não manifestação do sindicado, na forma e nos prazos estabelecidos na legislação trabalhista, representará anuência com o acordo individual.

Dessarte, frente aos questionamentos sobre a validade da norma lançada, é nítida a insegurança jurídica das partes envolvidas na relação empregatícia, pois dificulta a escolha de medidas e da forma como empregador deverá proceder. Essa insegurança também pode ser observada em outras áreas do direito.

 

RPEN: O que o senhor tem a dizer para pessoas que estão impossibilitadas de cumprir compromissos contratuais? Como devem agir?

JV: Que busquem renegociar seus contratos dentro do legalmente permitido, mas que, imprescindivelmente, procurem orientação jurídica adequada, a fim de evitar conflitos supervenientes.

 

Referências:

 

1 CHAGAS, EVANDRO, 2020 apud FUCHS, Antonio. Covid-19: infectologista Estevão Portela fala sobre  medidas preventivas e aspectos clínicos. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/covid-19-infectologista-estevao-portela-fala-sobre-medidas-preventivas-e-aspectos-clinicos>. Acesso em: 7 abr. 2020.

2 FORATO, Fidel. COVID-19: há pelo menos 8 tipos diferentes do novo coronavírus pelo mundo. Disponível em: <https://canaltech.com.br/saude/covid-19-ha-pelo-menos-8-tipos-diferentes-do-novo-coronavirus-pelo-mundo-162862/>. Acesso em: 7 abr. 2020.

3 BRASIL. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 936, DE 1º DE ABRIL DE 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm>. Acesso em: 7 abr. 2020.

4 BRASIL. LEI Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2020.

5 Juristas. Covid-19: Liminar permite redução no aluguel pago por restaurante. Disponível em: <https://juristas.com.br/2020/04/04/covid-19-liminar-aluguel/>. Acesso em: 8 de abr. 2020.

6 Juristas. Covid-19: Liminar permite redução no aluguel pago por restaurante. Disponível em: <https://juristas.com.br/2020/04/04/covid-19-liminar-aluguel/>. Acesso em: 8 de abr. 2020.

7 Juristas. Covid-19: Liminar permite redução no aluguel pago por restaurante. Disponível em: <https://juristas.com.br/2020/04/04/covid-19-liminar-aluguel/>. Acesso em: 8 de abr. 2020.

8 BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF). 21ª Vara Federal Cível da SJDF. Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400. Juiz: Rolando Valcir Spanholo, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2020.

9 GONÇÃOVES, Carlos Roberto. Direito civil, 3: esquematizado: responsabilidade civil, direito de família, direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p 337.

10 GUSMÃO DE, Diogo Ribeiro. Covid-19 e força maior nos contratos comerciais. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/80937/covid-19-e-forca-maior-nos-contratos-comerciais>. Acesso em: 8 abr. 2020.

11 GUSMÃO DE, Diogo Ribeiro. Covid-19 e força maior nos contratos comerciais. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/80937/covid-19-e-forca-maior-nos-contratos-comerciais>. Acesso em: 8 abr. 2020.

12 MIGALHAS. Escritório de advocacia consegue redução de aluguel até  maio. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/quentes/323693/escritorio-de-advocacia-consegue-reducao-de-aluguel-ate-maio>. Acesso em: 8 abr. 2020.

13 MIGALHAS. Escritório de advocacia consegue redução de aluguel até maio. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/quentes/323693/escritorio-de-advocacia-consegue-reducao-de-aluguel-ate-maio>. Acesso em: 8 abr. 2020.

14MEIRELLIS, Hely Lopes, 2001 apud GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed., ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 414.  

15 GASIOLA, Gustavo Gil. O fato do príncipe no sistema de tutela dos contratos administrativos.

Revista Digital de Direito Administrativo, São Paulo, v.1, n. 1, p. 69-84, 2014. Disponível em: <file:///C:/Users/diskt/Downloads/73563-Texto%20do%20artigo-99030-1-10-20140205.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2020.

16 GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed., ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 414.  

17 SANTOS DOS, Enoque Ribeiro. Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus: análise jurisprudencial. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2020/03/25/fato-do-principe-analise-jurisprudencial/>. Acesso em: 30 marc. 2020.

18 GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed., ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 414.  

19 MARTINS, Sérgio Pinto, 2002 apud GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. Curso de Direito do Trabalho. 11ª ed., ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 414.  

20 SANTOS DOS, Enoque Ribeiro. Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus: análise jurisprudencial. Disponpivel em: <http://genjuridico.com.br/2020/03/25/fato-do-principe-analise-jurisprudencial/>. Acesso em: 30 marc. 2020.

21 SANTOS DOS, Enoque Ribeiro. Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus: análise jurisprudencial. Disponpivel em: <http://genjuridico.com.br/2020/03/25/fato-do-principe-analise-jurisprudencial/>. Acesso em: 30 marc. 2020.

22 BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF). 21ª Vara Federal Cível da SJDF. Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400. Juiz: Rolando Valcir Spanholo, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2020.

23 BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF). 21ª Vara Federal Cível da SJDF. Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400. Juiz: Rolando Valcir Spanholo, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2020.

24 BRASIL. Justiça Federal. Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF). 21ª Vara Federal Cível da SJDF. Processo n. 1016660-71.2020.4.01.3400. Juiz: Rolando Valcir Spanholo, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/juiz-df-aplica-teoria-fato-principe.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2020.

25 JARDIM, Flávio; SILVEIRA, André. O novo coronavírus e a relação contratual. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/jardim-silveira-coronavirus-contratos#_ftn5>. Acesso em: 8 arb. 2020. 

26 Restatement (Second) of the Law of Contracts, apud  JARDIM, Flávio; SILVEIRA, André. O novo coronavírus e a relação contratual. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/jardim-silveira-coronavirus-contratos#_ftn5>. Acesso em: 8 arb. 2020. 

27 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1506600/RJ. Relator MARCO BUZZI, DJe 12/12/2019, apud JARDIM, Flávio; SILVEIRA, André. O novo coronavírus e a relação contratual. Disponível em: . Acesso em :8 arb. 2020. 

 

 

 

 

 




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